Tente imaginar um país. Um país que é abundante em riquezas naturais, com um enorme potencial de crescimento econômico, possibilidades infindáveis de proteção do meio ambiente e um povo caloroso. Por outro lado, esse país enfrenta altos índices de violência urbana, aumento do poder do narcotráfico, desigualdade social e carências nos sistemas de saúde e educação. Sim, faz sentido caso você tenha pensado no Brasil. Mas não estamos sozinhos. Na semana passada, pude trocar ideias com quatro ex-presidentes de países da América Latina: Laura Chinchilla, a primeira e única mulher a comandar a Costa Rica, entre 2010 a 2014; Felipe Calderón, que governou o México de 2006 a 2012; Alberto Fernández, que esteve à frente da Argentina entre 2019 e 2023, e Jorge “Tuto” Quiroga, que presidiu a Bolívia por um ano a partir de 2001.
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Os quatro estiveram no Rio para participar do FII Priority, no Copacabana Palace. Organizado pelo fundo árabe Future Investment Initiative Institute, o evento foi palco de debates sobre transição energética, inovação tecnológica e inclusão social — temas urgentes na construção de um futuro mais próspero e mais justo. A seguir, os melhores trechos dessa reunião, de protestos e sobretudo de propostas.
Há uma frase, de autor desconhecido, que diz o seguinte: “Na América Latina, os países são como gêmeos siameses grudados pelas costas. Eles têm histórias semelhantes, dependem um do outro, compartilham o mesmo corpo, mas não se olham nos olhos”. Faz sentido?
Jorge Quiroga: Sim, bastante. A Bolívia divide metade da fronteira com o Brasil, mas vivíamos de costas, um para o outro, sem bons vínculos comerciais ou energéticos. Isso mudou no governo Fernando Henrique Cardoso, talvez o melhor que o Brasil tenha tido, que se comprometeu com a integração. Dessa forma, esses irmãos puderam se encontrar por meio de um gasoduto que liga o sul da Bolívia até São Paulo. Isso criou um cordão umbilical de desenvolvimento, que transformou a economia do meu país neste século. Mudamos uma relação que até aquele período estava mais vinculada ao tráfico de drogas e à criminalidade. Infelizmente, hoje temos um governo, na Bolívia, que esgotou as reservas e desperdiçou o gás.
Laura Chinchilla: Por vezes, as disputas mais complicadas são as disputas entre famílias. É isso que acontece na América Latina: apesar de sermos tão parecidos, não conseguimos nos integrar uns aos outros. A América Latina é a região com os níveis mais baixos de comércio intrarregional do mundo. O Mercosul, por exemplo, tem sido um desastre. Portanto, a pergunta que estamos nos fazendo é se as nossas lideranças estão à altura da tarefa de entender que a América Latina só ganha se avançarmos em direção à integração ou se elas preferem brigar como crianças mimadas nas redes sociais.
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Felipe Calderón: Acredito que nós, latino-americanos, trabalhamos muito com uma ideia autoindulgente. Gostamos de nos afirmar como o continente do futuro, mas este futuro não está chegando. O México, por exemplo, é o maior produtor de prata do mundo, mas isso gera prosperidade? Não, porque a prosperidade só acontece quando prosperam as pessoas que trabalham, se esforçam, economizam e respeitam a lei.
Na América Latina, porém, ainda temos sistemas institucionais que premiam os cidadãos com postura abusiva — e essa categoria pode incluir tanto um sindicato quanto um grande empresário monopolista, um político corrupto ou um traficante de drogas. Precisamos, portanto, mudar nosso sistema institucional, o que tem a ver com o Estado de Direito e com o sistema de incentivo econômico. Podemos jogar confete e papel colorido sobre nós e dizer que somos o continente do futuro, mas ainda vejo nisso um grau de infantilidade.
Alberto Fernández: Acho que houve um momento na América Latina em que a integração era possível, para além das ideologias de cada presidente. Eu fui chefe de Gabinete do Néstor Kirchner, antes de ser presidente. E me lembro de participar de congressos com o presidente Sebastián Piñera, do Chile, e com o Álvaro Uribe, da Colômbia, que pensavam diferente de nós. Mas havia uma vontade clara de unir esforços para trabalhar juntos. Acho que a eleição do Trump nos EUA tornou isso mais difícil, mas a vontade ainda existe, caso contrário não teria havido a reunião da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) com a União Europeia no ano passado. Foi possível justamente porque existe essa vontade de unidade e porque estamos buscando um destino comum.
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Desde a Revolução Industrial, creio que nunca houve um vento tão favorável à América Latina. Temos um enorme potencial ecológico e de produção de alimentos. Essa agenda global coloca uma oportunidade na nossa mesa, para que a América Latina seja ao mesmo tempo líder na bioeconomia e na preservação de florestas, gerando renda para o povo...
L.C.: No caso da Costa Rica, optamos por deixar para trás as indústrias extrativas, desinvestindo em petróleo e gás e evitando a exploração de ouro. Protegemos 30% do território e impusemos impostos sobre a poluição e sobre a gasolina, com isso financiando o reflorestamento. Hoje produzimos 100% da energia a partir de fontes renováveis. Ao renunciar a essas outras fontes, fomos obrigados a investir no que é mais importante para qualquer país, que é o capital humano. E qual foi o resultado? A qualidade do nosso capital humano nos transformou num hub na fabricação de semicondutores, o produto que os EUA estão tentando tirar da Ásia, e num hub na produção de tecnologias médicas. Portanto, é possível agarrar as oportunidades quando há visão, boa condução política e continuidade das políticas públicas.
F.C.: No México, quando a crise de 2008 nos atingiu com força, apostamos muito forte no comércio aberto. Na política automotiva, removemos todas as tarifas protecionistas, paradoxalmente para fortalecer a indústria mexicana. Assim, hoje é possível produzir no país um carro com motor fabricado no Japão, o sistema eletrônico fabricado em Honduras e por aí em diante. Essa abertura motivada pela tarifa zero levou o México a se tornar uma potência no setor automotivo. Quando entrei na Presidência, éramos o nono maior exportador de veículos no mundo. Quando saí, já éramos o quarto.
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J.Q.: Este século foi dominado pela China na América do Sul. Digo que, do Canal do Panamá até o sul, somos muito mais chineses do que americanos. Só o México é exceção, porque eles dependem muito das remessas e das exportações dos EUA. Percebemos isso em 2008, quando veio a crise do Lehman Brothers [e na economia americana], e percebemos que a China continuou crescendo, e a América do Sul também. Por quê? Porque na América do Sul temos energia, alimentos e minerais em abundância. É isso que os chineses estavam comprando a preços crescentes e em volumes cada vez maiores.
Fosse soja da Argentina, estanho, zinco, chumbo e prata da Bolívia, cobre do Chile, petróleo da Venezuela, carvão da Colômbia, era isso que os chineses estavam comprando. Agora, onde estamos e o que devemos fazer? Nos EUA — e isso não tem a ver com a eleição de Donald Trump ou de qualquer outro nome —, é impossível aprovar um acordo de integração comercial ou dar um trato digno aos imigrantes. Não querem nossos produtos nem nossa gente.
Hoje temos três assentos na cúpula do G20, os 20 países mais importantes do mundo: Argentina, México e Brasil. E eu me pergunto: nós estamos indo para esse encontro com uma posição compartilhada? Uma posição comum sobre comércio, Inteligência Artificial, exploração do lítio? Vamos reproduzir a cadeia de exploração de matérias-primas, vender tudo para os EUA, a Europa, a Ásia, de modo que eles nos devolvam tudo com valor agregado, ou poderemos fazer isso aqui na América do Sul, para gerar um polo de baterias de lítio, para nós e para o mundo mais sustentável?
A.F.: As economias mais prósperas não são as que têm lítio, petróleo ou alimentos. São aquelas que têm a capacidade tecnológica para explorar toda essa matéria-prima. Temos que chegar a um acordo sobre como tirar proveito de tudo isso, porque entre Bolívia, Argentina e Chile há dois terços do lítio do mundo. Na última reunião da Celac com a União Europeia, propusemos que o bloco admita que precisa acabar com a exploração do extrativismo e que analise projetos para agregar valor ao lítio que temos. Ou seja: o que temos que exportar não é o lítio, mas as baterias de lítio. Precisamos agregar valor à nossa matéria-prima, caso contrário, continuaremos mal parados.
As ideias e as iniciativas estão na mesa quando a gente discute América Latina, mas eu sinto falta da execução. E há um segundo problema: quando se troca de governo, abandona-se tudo que foi feito para começar de novo...
F.C.: É correto, e soa bem, que nos unamos para produzir carros entre os três países, certo? Mas, para isso, é fundamental que haja comércio livre. Temos no México tarifas zero absolutas. Para fazer um acordo com Brasil e Argentina, eles também teriam que baixar a tarifa, e aí a competitividade cresceria. Mas, se o Brasil e a Argentina escolhem permanecer com suas tarifas, apenas nós seguiríamos crescendo com o mundo. Há uma concepção protecionista e uma concepção de livre mercado no que diz respeito às taxas. Creio que devemos acolher a do livre mercado. Além disso, precisamos falar sobre a dívida. O déficit público, quando aumenta, produz uma despesa significativa nas finanças públicas, e isso provoca o acúmulo de dívidas históricas. É como um cartão de crédito, que você usa para pagar um jantar e deixa a fatura para o mês seguinte.
Talvez a maior preocupação no Brasil seja a violência urbana. E isso não é uma exclusividade: 40 candidatos foram assassinados na última eleição mexicana. No Brasil, o crime organizado está cada vez mais organizado e criando tentáculos...
L.C.: Aqueles que eram os países mais seguros são hoje os que enfrentam um crescimento mais acelerado das taxas de homicídios. Veja o caso do Equador, que talvez seja o mais alarmante, mas também o do Chile e do meu país, a Costa Rica. A América Latina se tornou um centro de mercados ilícitos. Temos os três principais produtores e exportadores de cocaína. Temos um dos três maiores produtores e exportadores de ópio. E somos um mercado promissor para drogas sintéticas e fentanil. A solução já não depende tanto das decisões locais. Hoje, o crime organizado é a principal ameaça à estabilidade institucional da América Latina.
J.Q.: Quando não há instituições, Estado de Direito, progresso, oportunidades, nossos jovens buscam três caminhos: a criminalidade, a informalidade ou a migração. Ou entra no crime, ou emigra para os EUA ou para a Espanha, ou entra no setor informal, que não paga impostos. O antigo ciclo em que a coca era produzida na Bolívia, reembalada na Colômbia e levada para os EUA não é mais a realidade. Todos produzem cocaína, que vai para os mercados de toda a América do Sul. A coca do Peru, para onde vai? Para o Equador, para o porto de Guayaquil. Quando o México começa a endurecer contra o tráfico de drogas, o tráfico procura rotas na Costa Rica, na Guatemala. É uma multinacional do crime que causa danos gigantescos. Precisamos pensar em uma estratégia abrangente de coordenação entre todas as forças de segurança.
F.C.: É um fenômeno de captura do Estado, que ocorre no México em particular, mas que está se espalhando por toda a América Latina. O verdadeiro negócio do crime organizado é substituir o governo na cobrança dos impostos, tomando a renda dos cidadãos.
O Rio vive isso com o tráfico e as milícias. As milícias ocuparam o espaço onde o Estado não está, recolhendo “impostos”, sob pena de violência...
F.C.: Estados que não construíram institucionalidade capaz de executar as leis estão sendo substituídos pelo crime organizado. Em nossos países, nas regiões que foram abandonadas pelo Estado, às vezes por omissão, outras por cumplicidade franca e aberta, o monopólio da lei foi perdido, dando lugar aos cartéis. São eles que estabelecem as regras. O crime passa do terreno do ilegal — drogas, prostituição — para o terreno do legal, onde está o comerciante, que também começa a ser extorquido. Temos três formas de enfrentar isso. Primeiro, usando toda a força do Estado; segundo, construindo instituições de segurança e justiça de forma mais rápida que os cartéis constroem células de criminalidade; e, em terceiro lugar, há de se fazer um esforço social enorme para dar oportunidade aos jovens que estão se perdendo para os cartéis por omissão estatal.
Queria fazer a vocês uma pergunta que fiz, certa vez, ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: o que teria feito de diferente nos dois mandatos como presidente?
A.F.: Eu recebi um país com uma dívida que eu não tinha como pagar, então é muito difícil responder a esta pergunta. Um país que enfrentou a pior seca na Argentina nos últimos cem anos. A inflação foi um problema que não pude resolver. Então e, se você me perguntar, o que mudaria em meu tempo, eu diria: mudaria o tempo que vivi.
L.C.: Eu tive que começar meu mandato aplicando medidas controversas, e o que consegui com isso foi simplesmente o acúmulo de desgaste. Quando tentei pedir aos empresários mais sacrifício, por meio de mais impostos, e aos sindicatos do setor público mais sensatez na contenção de gastos, para corresponder aos sacrifícios, nem um nem outro estavam dispostos a colocar o próprio interesse de lado. Temos de aprender um pouco o momento certo de colocar na mesa as controvérsias que precisamos enfrentar.
J.Q.: Algo que eu gostaria de ter feito muito melhor é explicar que, na virada do século, a Bolívia gerou oportunidades sem precedentes e virou o coração de gás que alimentava a Argentina e o Brasil. Fizemos uma obra longa e milagrosa e junto com isso eliminamos todas as dúvidas externas. Mas às vezes, na vida, quando o doente estiver curado, é preciso continuar explicando o que fazer para que ele não tenha uma recaída. Eu acho que explicar para as pessoas como as coisas foram consertadas é tão importante quanto explicar como consertá-las.
F.C.: Acho que eu deveria ter sido muito mais ousado, usando todas as ferramentas legais e políticas ao meu alcance, para que os estados cumprissem seu dever de limpar a polícia, atacar a corrupção, enfrentar o crime. E a segunda coisa: deveria ter aproveitado mais a Presidência. Esse é um conselho que dou a todos: temos que aproveitar mais a vida.
A.F.: Você me lembrou de algo que o Ernesto Samper [presidente da Colômbia entre 1994 e 1998] sempre diz: é muito bom ser ex-presidente. O único problema é que você precisa ser presidente antes.